Um pé na aldeia e outro no mundo


     

Letra A • Quinta-feira, 10 de Dezembro de 2015, 12:06:00

A escola e os rituais                           

“Como a gente alfabetiza?... A gente mostra as árvores, como chama essa árvore. Qual a árvore que dá semente, como chama a semente...”  “Minhas crianças são todas pequenas, aí tem hora que eu mando fazer desenho de algum bicho, bicho que tenha nome curtinho, nome que tenha pouquinha letra, para eles poderem interpretar”. Ao relatar um pouco de suas aulas com crianças de 5 e 6 anos, Sueli Maxakali expressa a ideia de um ensino que integra bem a vida na comunidade e o conhecimento escolar.

Sueli concedeu entrevista ao Letra A em português, segunda língua para ela, já que seu povo tem o Maxakali como idioma materno. Entre as 160 famílias de Aldeia Verde, no município de Ladainha (MG), onde ela mora e é professora, são raros os falantes de português. Sueli aprendeu com o tio, que era cacique. “Eu queria aprender para defender meu povo.” O aprendizado permitiu a realização de projetos em parceria com a universidade. No início dos anos 2000, ela integrou um trabalho de registro de cantos Maxakali, que resultou em livro. Outra publicação de que participou foi Hitupmã’ax/Curar, livro bilíngue e ilustrado criado a partir da ideia de orientar os agentes de saúde a trabalhar com seu povo. As publicações se tornaram obras de referência nas escolas Maxakali.

O contato com a universidade também promoveu a disseminação da linguagem audiovisual na comunidade. Sueli explica como as filmagens se tornaram um recurso pedagógico importante. Um dos exemplos que ela apresenta se refere ao ritual de tatakox (lagarta), em que as crianças do sexo masculino ficam um mês isoladas. “Tem crianças que, quando [o ritual] vai pegar elas, ficam muito assustadas. Já quando eles estão vendo as filmagens, aí não assustam.” Outras filmagens também servem “para aprender o segredo, os costumes, como a caça, saber fazer arco e flecha...” E ainda permitem o contato com outras culturas indígenas: “Eles gostam muito de assistir o filme que não é nosso também, filme de outros parentes, com as danças e os mitos deles. Tem coisas parecidas com as nossas.”

Como a escola tem vinculação com a rede de ensino de Minas Gerais, Sueli fala que muitas vezes ela “não é do jeito que o Maxakali pensa, que o Maxakali sonha”. “Quando a gente vai fazer alguma coisa, a gente sonha primeiro. Nossos rituais que falam. O pajé sonha e fala assim: ‘a escola vai ser feita dessa forma’. Como [a escola] já vai estruturada, não faz muito parte dos nossos rituais.” As planilhas para organização da escola e a composição da merenda que é fornecida são alguns pontos que Sueli aponta como problemáticos na estruturação da escola. Mas ela ainda a vê como uma instituição importante na comunidade, por fornecer livros em Maxakali, promover o ensino e a escrita na língua materna e, principalmente, porque não se sobrepõe às tradições na educação das crianças.

Inspiração

A aproximação entre a equipe do Letra A e o curso FIEI aconteceu por meio de uma oficina de introdução ao jornalismo, no Seminário Políticas Linguísticas, em setembro do ano passado, no período de aulas em Belo Horizonte. Na atividade, estudantes do FIEI, que já são educadores em suas comunidades, desenvolveram o jornal impresso O Língua. Trazendo as expressões Ôté omhá, Atxôhã, Mrmezé, Nhemombe’ú e Meang’gã no subtítulo (todas elas remetendo às ideias de comunicação, informação ou expressão), a publicação tornou-se mais uma forma de dar voz aos povos indígenas na universidade.

Da experiência surgiram as primeiras conversas que impulsionaram essa reportagem, porque a educação indígena não deve interessar somente aos educadores indígenas. Cinco povos estão representados aqui – Xacriabá, Pataxó Hã Hã Hãe, Pankararu, Pataxó e Maxakali –, o que ainda é pouco, perto das 305 etnias indígenas que vivem no Brasil, segundo o Censo de 2010. Mas esse pequeno recorte já mostra como os esforços por uma escola integrada à comunidade, a valorização dos saberes locais, a autoria de materiais didáticos pelos professores, os projetos de educação voltados para a participação política, entre várias outras características relatadas aqui, podem inspirar vários educadores. 

CONTINUE LENDO

Um pé na aldeia e outro no mundo - parte 1

Um pé na aldeia e outro no mundo - parte 2

Um pé na aldeia e outro no mundo - parte 3

Um pé na aldeia e outro no mundo - parte 4