Uma conversa fora das linhas entre neto querendo ler e avô querendo escrever

Crônica | Letra A 57


     

Letra A • Sexta-feira, 20 de Janeiro de 2023, 14:34:00

Por Caio Junqueira Maciel*

Não se deve deixar coisas perigosas ao alcance das crianças, todo mundo sabe disso. Mas sucede que caiu nas mãos do menino José um livro de seu avô – este velho que vos escreve e aborrece, improvável leitor. E foi mais ou menos assim que se deu a conversa, com ligeiras intervenções da fantasia, posto que José tem apenas seis meses e tem certa dificuldade em engendrar períodos e ler com exatidão as sentenças.

– Vovô Caio, mamãe Lud falou que foi você que escreveu este livro, verdade?

– Verdade.

– E tudo que está nele é também verdade?

– Nem sempre…

– Como assim? Pode ter mentira num livro?

– A gente fala que é ficção, uma história que a gente inventa. Sua mãe não já te contou história do Pinóquio? Aquilo é ficção…

– Mas o nariz dele cresceu… Mas olha, já folheei esse livro e não encontrei figuras, só estas formiguinhas esquisitas, deixando espacinhos para a gente descansar os olhos...

– Uai, José, isso daí é um livro desfigurado, desgravurado, descaretado. Minto: só tem minha careta. Mas eu não sou careta.

– É livro sobre futebol? Tem hora que aparecem pontos corridos…

– Pontos corridos. Como assim?

– Esses três pontinhos assim ó…

– Não são pontos corridos, são reticências!

– E quando aparece um pontinho só, deu canseira?

– Mais ou menos, afinal é o ponto final...

– E esse pauzinho aí ó, fazendo cocô, o que é?

– Ô José, não é pauzinho fazendo cocô, é sinal de exclamação!

– E aquele outro sinal lá, um anzol sem minhoca, o que é?

--É o ponto de interrogação.

– E esse tanto de marquinha entre os sinais, o que são?

– São as letras, elas formam palavras, que contam as histórias.

– Tudo isso pra fazer a gente dormir?

– Seria bom se você dormisse sim, mas é mais para as pessoas acordarem…

– Livro serve pra deixar a gente acordado?

– É o que pretendem os seus autores, ainda que alguns realmente nos levem ao sono…

– Esse livro aqui conta qual história?

– Agora você me apertou, José: pois é um livro de contos, há várias histórias nele, e também alguns poemas, e mais alguns textos que parecem crônicas, e um ou outro texto que é mais chegado a aforismos… Mas isso ainda é complicado pra você, que nada sabe sobre gêneros…

– Ué, não sou do gênero masculino?

– É José, quanto ao sexo, você nasceu homem. Como sua irmã nasceu mulher. Mas no mundo dos livros há vários gêneros literários, como poesia, conto, crônica, romance… Por sinal, seu avô escreveu um romance, mas tem gente que fala que o gênero é diário, pois sua estrutura é de um diário… Mas os escritores têm liberdade de misturar tudo num livro só…

– E uma pessoa pode ter mais de um gênero?

– Aí a conversa é outra, vai depender de muita coisa, quando você crescer mais um pouco haverá de ter tempo para entender isso.

– Quando eu crescer, vou poder também escrever livros?

– Claro, se tiver vontade, se tiver coisas pra contar, se tiver o dom pra jantar palavras…

– Jantar palavras ou juntar palavras?

– Ah, você pescou o trocadilho intencional, né? Pra mim, é mais ou menos a mesma coisa, pois quem escreve, deve-se alimentar com muitas palavras… alimentar, meu caro Watson!

– Não entendi, meu nome é José.

– Um dia você vai entender isso e muito mais…

– Pelo jeito, ler livros é uma forma da gente aprender muita coisa e mais depressa, né?

– Penso que sim, e que bom que você, ainda pequenino desse jeito, também pense…

– Vovô Caio, a conversa está boa, mas estou ficando com um soninho… Conte uma história pra mim, mas não dessas desse livro aí…

– Uai, você não gostou desse meu livro?

– Gostei mais da página que aparece seu retrato. Você é uma mistura do Geppetto com o Papai Noel...

 

*Escritor mineiro, autor de livros de ensaios, poesias, contos e do romance Um estranho no Minho (editora Viseu, 2020).