Viva, Ligia, seu tempo é sempre!


     

Letra A • Quarta-feira, 20 de Abril de 2016, 17:31:00

Por Aparecida Paiva

 

Oh! Bendito o que semeia

Livros... livros à mão cheia...

E manda o povo pensar!

O livro caindo n’alma

É germe – que faz a palma,

É chuva – que faz o mar!

(Castro Alves)

 

Cidíssima (“superlativa criatura”) foi o apelido que ela me deu. Minha “Musa-mestra”, eu devolvi com afeto, ganhando de presente sua risada inesquecível. E foi assim, fortalecidas pelo afeto que brotou de genuína amizade, que desenvolvemos nossa parceria durante anos, em defesa da literatura infantojuvenil; sua “causa”, ela dizia, sua “casa”, acrescentou Graça Ramos[1].

Superlativa criatura foste tu, Ligia Cademartori, gaúcha de Santana do Livramento, uma das maiores autoridades em literatura infantojuvenil do país, ao lado de Regina Zilberman e Marisa Lajolo. Juntas, a partir dos anos 80, definiram muitos dos rumos teóricos que sustentam a literatura infantojuvenil brasileira, dando-lhe alicerce para que se tornasse potente e importante. As três estudiosas permanecem referências atualizadas; são as teóricas brasileiras mais citadas nas pesquisas desenvolvidas na área.

Professora-doutora em Teoria Literária, autora de inúmeros estudos e livros sobre o tema, atuou como docente na Universidade de Caxias do Sul (UCS) e na Universidade de Brasília (UnB), onde se aposentou. Antes, porém, de integrar os quadros da UnB, foi para Brasília, em 1984, trabalhar no Ministério da Educação para enfrentar um grande desafio: ser uma das responsáveis pela implantação e coordenação do Programa Nacional Salas de Leitura, que pode ser considerado o embrião do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), em vigor até os dias atuais. Nesse último Programa, integrou a equipe de coordenação, em algumas de suas edições, com rigor e leveza, até se afastar para dedicar-se à tradução.

Nos últimos anos, paralelamente aos ensaios que publicava, dedicou-se à tradução e à adaptação de clássicos para a editora FTD. Entre eles, Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, Dom Quixote, de Cervantes e Jardim de versos, de Robert Louis Stevenson, sobre o qual, segundo Graça Ramos, “passou meses buscando a melhor melodia para cada um dos versos em trabalho de ourivesaria rítmica”. O esmero com que cuidava das traduções levou-a a ingressar na Lista de Honra do International Board on Books for Young People, sediado na Suíça, pela tradução de Charles Dickens e Wilkie Colins(1991).

Em 2009, Ligia publicou, pela Editora Autêntica, na série “Conversas com o professor”, minha obra preferida, O professor e a literatura – para pequenos, médios e grandes. O livro ganhou o prêmio Cecília Meireles da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, de melhor livro teórico em 2010. Nessa obra, densa em conhecimentos teóricos, ela se aproxima do leitor, sem arrogância, oferecendo-lhe, em “despretensiosa” conversa, reflexões sobre os elementos da literatura infantil clássica e contemporânea, discutindo questões importantes para a formação de novos leitores. Cenas da literatura infantil, sua vivência de leitora, são colocadas generosamente a serviço de outros professores, estratégia didática só alcançada por educadores natos.

Em bancas de mestrado e doutorado, onde tive o privilégio de estar com ela, impressionava-me o rigor, o respeito pelo texto do outro, a forma elegante de levantar questões relevantes, instigando a todos. Nas últimas palestras que proferiu (e não foram poucas), em diferentes pontos do país, foi defensora ferrenha do PNBE. A militância pela causa da literatura infantojuvenil, pela sua democratização, em especial, pelo seu acesso aos alunos das escolas públicas, permaneceu inabalável.

Superlativa e surpreendente criatura, abriu sua intimidade como o laço de um presente e fez sua estreia na poesia, com O tempo é sempre, pela editora 7 letras, do Rio de Janeiro, em 2015, ano em que nos deixou. Mas eu a sinto aqui, comigo, enquanto escrevo esse texto; ouço sua risada gostosa, seu deboche contra a arrogância acadêmica. Nosso último encontro num fim de tarde em que relaxávamos depois de mais um trabalho concluído; um fim de tarde, o sol refletido na Lagoa da Pampulha; um pedido inesperado: “Tire umas fotos, Cidíssima, é preciso capturar esse instante: estou me sentindo linda!” E abriu para mim um daqueles seus singulares sorrisos, as bochechas rosadas, pelo pudor do pedido feito.

Vida vivida intensamente, legado que o tempo não apagará. Memória que se agarra na poesia, última piscadela para dobrar o tempo, último deboche, carregado de ironia para desarmar a circunspecção.

 

 


[1] Graça Ramos, Réquiem, Jornal O Globo , 4 de agosto de 2015 (as demais citações de Graça Ramos são do mesmo texto).