Aprender ao inventar

Na edição 51 do Letra A, a pesquisadora portuguesa Margarida Alves Martins falou sobre seu trabalho com 'escrita inventada' na Educação Infantil, mais conhecida no Brasil como 'escrita espontânea'


     

Letra A • Sexta-feira, 21 de Dezembro de 2018, 15:29:00

 
“Outro grupo de crianças escreveu assim. O que vocês acham?” Comparações como essa são feitas recorrentemente pelo grupo de trabalho da pesquisadora portuguesa Margarida Alves Martins, em atividades com turmas de Educação Infantil cujo foco é a escrita inventada (no Brasil, mais conhecida como ‘escrita espontânea’). As crianças não sabem, mas a comparação que está sendo feita é com a escrita correta da palavra; isso só não é dito para que elas não se inibam em suas reflexões. “Como vocês acham que os outros meninos pensaram para escrever assim? E vocês, como pensaram?” Com intervenções assim, o adulto vai guiando a discussão, que não dura mais que 20 minutos em cada sessão. Em cada turma, o total de sessões não passa de dez. “Ao fim desse tempo, a gente verifica o tanto que as crianças evoluem. Muitíssimo”, Margarida relata com empolgação.
 
Convidada pelo Ceale em novembro passado para realizar um workshop sobre as pesquisas e as intervenções com a escrita inventada que realiza em Portugal, a pesquisadora do Instituto Universitário de Ciências Psicológicas, Sociais e da Vida (Ispa), de Lisboa, concedeu esta entrevista ao Letra A.
 
Por Vicente Cardoso Júnior
O que é "escrita inventada"?
A escrita inventada é o que, no Brasil, chamam de escrita espontânea. É a escrita que a criança faz antes de ser alfabetizada, geralmente na Educação Infantil, quando ela começa a experimentar escrever, mas, muitas vezes, ainda não faz relação entre a escrita e a linguagem - mas relaciona a escrita com o real, como se fosse um desenho. Depois, começa a representar os sons do oral, apesar de, muitas vezes, ainda não produzir uma escrita alfabética. Trata-se de um processo em que a criança experimenta a escrita, observa a forma como os outros escrevem, pensa sobre a escrita e descobre progressivamente como se escreve, antes de ser ensinada formalmente a escrever. 
A partir do workshop realizado aqui, o que diria que se pode fazer a partir da escrita inventada (ou espontânea)? 
É importante levar as crianças a pensar em conjunto, com a mediação de um adulto, na forma como se pode escrever. Não basta avaliar a forma como as crianças escrevem e pensam sobre a escrita; é importante intervir. Em Portugal, temos desenvolvido programas de escrita com pequenos grupos de crianças de cinco anos (em geral, de três a cinco crianças), antes de serem alfabetizadas. Sugerimos-lhes que discutam umas com as outras como escrever determinadas palavras escolhidas geralmente a partir de uma atividade prévia (leitura de um livro, escuta de uma canção, de uma lenga-lenga…). Durante a discussão em que pedimos às crianças que pensem até chegarem a um consenso nas várias letras a escrever, o adulto dá as ajudas necessárias durante o processo da escrita, mediando as interações entre elas, chamando a atenção para determinados sons, para determinadas letras conhecidas, sintetizando as diversas propostas. Depois da escrita de cada palavra, o adulto mostra às crianças a escrita correta da mesma palavra, dizendo que foi um outro grupo de crianças que escreveu assim e leva-as a comparar as duas formas de escrita, a pensar nas semelhanças e diferenças e a decidir qual será melhor e por que. Depois avaliamos, ao fim de algumas sessões, geralmente 10 sessões de 15 a 20 minutos, a forma como a escrita das crianças evolui. Esse tipo de trabalho está também sendo feito no Brasil pela Sara Mourão, pesquisadora do Ceale, e é muito semelhante: grupos de quatro crianças, de cinco anos, com uma proposta de pensar em conjunto como se escrevem determinadas palavras. O adulto vai escrevendo letra por letra do que as crianças dizem e [vai] fazendo com que elas compartilhem ideias e pontos de vista diferentes até chegar a um consenso. Aí fica uma produção escrita - uma palavra escrita pelo grupo de crianças. 
 
E depois mostra a escrita correta. Por quê? Se a gente não disser que é correta, a criança vai ter uma forma de estar diferente e vai querer discutir. "Como vocês acham que os outros meninos pensaram para escrever assim?". "E vocês, como pensaram?". Dá para fazer um confronto entre a escrita que elas produziram e a escrita feita pelo outro grupo de crianças. Na maioria das vezes, elas vão fazer uma comparação. "Qual foi a primeira letra que vocês escreveram? E os outros meninos?” A gente faz esse confronto e depois chega a uma conclusão final - certa ou errada - porque o que importa aqui não é chegar a uma escrita correta, e [sim] que se pense no processo de escrita. O que fizemos no Brasil e em Portugal tem resultados semelhantes. A gente não faz muitas sessões. A Sara fez umas oito. A gente costuma fazer umas dez, mas não mais do que isso. Curtas, 15 minutos, 20 minutos. E, ao fim desse tempo, a gente verifica o tanto que as crianças evoluem. Muitíssimo. No Brasil, igual. 
A compreensão da evolução na escrita, por meio de teorias como a psicogênese da língua escrita, tem qual importância nesse processo?
A teoria da psicogênese da língua escrita chamou a atenção para que a criança, muito antes do ensino formal, muito antes de ser ensinada a ler e a escrever, pensa sobre a escrita e constrói hipóteses sobre ela. O primeiro grande contributo da teoria psicogenética, do meu ponto de vista, é ter chamado a atenção para que a criança é um ser ativo que se interroga sobre o que a rodeia, que pensa a partir do que observa, que escreve desde muito cedo e que essa escrita tem uma lógica. Nessa perspectiva, não se deve olhar só para o produto final, para a escrita que a criança produz, mas para o processo, para a forma como a criança pensa para escrever. O segundo aspecto muito importante da teoria psicogenética é o fato de ter mostrado que o erro é muito importante para o processo de compreensão de como podemos ajudar a criança a melhorar. Antigamente não se olhava para o erro: ele era para riscar. Olhava-se para o que estava certo. A teoria psicogenética mostrou que, olhando para o erro, se consegue entender o processo de pensamento da criança e ajudá-la a evoluir. 
 
Os trabalhos da Emilia Ferreiro foram e são para mim, sem dúvida nenhuma, inspiradores para o trabalho que tenho desenvolvido, em que procuro olhar para a forma como a criança pensa e conceber que tipo de intervenção e de estratégias educativas se podem delinear para potenciar a evolução do seu pensamento.
 
 

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