Aprender ao inventar | parte 3


     

Letra A • Sexta-feira, 21 de Dezembro de 2018, 15:38:00

 
A professora Magda Soares fala de uma tendência de importarmos estudos da língua inglesa para pensar a alfabetização no português brasileiro. Quais seriam as especificidades de se alfabetizar em língua portuguesa? E como é diferente no português brasileiro e no português europeu?
Eu acho que há muito a tendência de se importar o que é feito em países de língua inglesa, nomeadamente na Inglaterra e nos Estados Unidos, para Portugal e para o Brasil, o que não tem sentido. As características da língua implicam diferenças na forma de alfabetizar. Por exemplo, o português tem uma estrutura silábica predominantemente do tipo consoante vogal. As crianças portuguesas e brasileiras têm tendência a generalizar esse tipo de estrutura silábica, que é a primeira a ser aprendida e que é muito frequente, a outras sílabas, e as dificuldades que muitas vezes elas têm quando leem e escrevem palavras com sílabas mais complexas advêm da aplicação do padrão do que é mais comum para aquilo que é mais incomum. Portanto, têm muitas vezes dificuldade em ler e escrever sílabas mais complexas porque utilizam o padrão da sílaba canônica, consoante-vogal. 
 
Sabendo isso (o que não existe no inglês), consegue-se interpretar os erros que ocorrem na leitura e na escrita dessas sílabas complexas (Consoante consoante vogal ou consoante vogal consoante, por exemplo) e pensar em estratégias para trabalhar com as crianças de forma a ultrapassar essas dificuldades. Se não se tiver em consideração as particularidades das diferentes línguas, a capacidade interpretativa dos erros que ocorrem e o consequente delineamento de estratégias pedagógicas ficam comprometidos. Há diferenças entre o português de Portugal e o português do Brasil. O Português do Brasil é bem mais fácil que o português de Portugal, porque no português do Brasil as vogais são abertas e pronunciadas. No Português Europeu é muito comum a redução de algumas vogais que não se ouvem, o que leva a dificuldades na escrita, em particular. É, assim, importante que as crianças tenham contato desde cedo com a escrita das palavras, pois é esse contato que leva a tomarem consciência da existência de certas vogais. 
Gostaria que falasse um pouco sobre as noções de consciência fonológica e consciência fonêmica e, ainda, se há alguma outra consciência desse tipo que é importante a criança desenvolver no momento de alfabetização.
Consciência fonológica é a consciência dos sons das palavras e a capacidade de os manipular de uma forma deliberada: tem a ver com a consciência das sílabas, ou a consciência das unidades intrassilábicas, como a rima, por exemplo. É você conseguir contar, juntar, dividir, tirar, trocar sílabas de palavras: entender, por exemplo, que a palavra ‘batata’ tem três bocadinhos, três sílabas. A criança pode não saber dizer que são sílabas, mas que tem três pedacinhos. Não pensar na palavra ‘batata’ do ponto de vista só do conteúdo, mas do ponto de vista da forma. É ter sensibilidade à forma das palavras. É ser capaz de pensar em palavras que terminam da mesma forma, como, por exemplo, cão, mão, sabão, balão.
 
Consciência fonêmica é a consciência do fonema. É a consciência do som menor de todos nas palavras. A consciência fonêmica adquire-se fundamentalmente com a aprendizagem da leitura e da escrita. Para escrever, tem que se pensar nos sons, mas alguns sons não se ouvem de forma isolada, ouvem-se integrados em sílabas. É a escrita que nos permite ter consciência dessses sons. A consciência fonêmica é você ser capaz de descobrir que, por exemplo, ‘pato’, ‘porco’ e ‘piada’ começam pelo mesmo som, neste caso, o fonema inicial. A consciência fonológica é mais genérica do que a consciência fonêmica. 
 
Outra consciência muito importante para a aprendizagem da leitura e da escrita é a consciência lexical: a consciência de palavra. A consciência de quantas palavras há numa frase, de que as palavras que se ouvem num contínuo quando se fala se separam na escrita. Por exemplo, as crianças pequenas acham que ‘pato’ é uma palavra, mas ‘de’ e ‘a’ não são. Por exemplo, quando se diz a frase: "Eu fui ao médico" e se pergunta a crianças antes do início da alfabetização quantas palavras há nessa frase, as respostas muitas vezes são ‘eu fui’ é uma palavra, ‘médico’ é outra’, ou então ‘eu fui ao médico’ é tudo uma palavra. Consciência de palavras é saber que "Eu fui ao médico" tem quatro palavras. 
 
E há outra consciência que é fundamental na aprendizagem da escrita: a consciência morfológica, que é você entender que há palavras que derivam de outras, que a partir de um radical, de uma palavra mãe, podem-se produzir outras. Que há palavras que se pode saber como se escrevem se souber escrever a palavra mãe. Por exemplo: ‘casamento’. Como se escreve, com ‘s’ ou com ‘z’? Como você vai saber? Você não sabe. Mas se você pensar que casamento vem de ‘casa’ e se souber escrever ‘casa’, você sabe escrever ‘casamento’... se você tiver a consciência de que as palavras podem provir uma das outras e se habituar a pensar assim, você consegue descobrir como certas palavras se escrevem, mesmo quando não há regra. Isso é muito importante, mais para a escrita do que para a leitura. Para a leitura também é importante, para se entender o que certas palavras podem significar. Por exemplo, se você souber que [o prefixo] ‘re-’ significa ‘tornar a’, você pode descobrir o significado de palavras desconhecidas em que o prefixo ‘re-’ existe. Por exemplo, o significado de ‘refazer’, de ‘retornar’. 
 
É importante, na Educação Infantil, desenvolver a consciência fonológica, a consciência de palavra e a consciência morfológica, que podem ser desenvolvidas brincando com a linguagem. A criança, quando é pequena, usa a linguagem para comunicar. São raras as ocasiões em que é levada a pensar sobre a linguagem. E é muito importante esse pensamento, pois favorece a aprendizagem posterior da leitura e da escrita. 
 

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