Entrevista: Ana Teberosky

Pesquisadora argentina fala sobre o processo evolutivo da criança na contemporaneidade e revisita seu clássico com Emilia Ferreiro, Psicogênese da Língua Escrita


     

Letra A • Segunda-feira, 22 de Dezembro de 2014, 14:58:00

Por Isabel Frade e Vicente Cardoso Júnior

Há três décadas, as crianças chegavam à alfabetização conhecendo muito menos as letras e o universo da escrita que nos dias atuais. A escola, por sua vez, não levava em conta esse conhecimento prévio. “Se as letras não eram ensinadas, se supunha que as crianças não sabiam.” Essa é uma das reflexões feitas pela educadora argentina Ana Teberosky ao revisitar Psicogênese da Língua Escrita, obra que publicou em parceria com Emilia Ferreiro, em 1979.

Enquanto desenvolve projetos com turmas de Educação Infantil e Ensino Fundamental na cidade de Barcelona, Ana Teberosky busca acompanhar como as transformações culturais, tecnológicas e educacionais atualizam o processo cognitivo de aprendizagem das crianças. “Muitas vezes assisto aos programas que elas assistem”, revela, ao defender que os professores precisam “se apropriar da contemporaneidade da criança”.  Após realizar a palestra “Leitura e Escrita na Educação Infantil: a experiência de Barcelona”1, na UFMG, em setembro, a pesquisadora concedeu esta entrevista ao Letra A.

 

Psicogênese da Língua Escrita ainda é uma obra de referência no Brasil para os estudos sobre alfabetização. Gostaríamos de saber que leitura você faz dessa obra atualmente, e que desdobramentos enxerga em relação a ela.

Psicogênese da Língua Escrita foi escrito no final de 1979. Daquela época para cá, a criança mudou muito, a cultura mudou muito. Não havia espaço digital, nem internet, nem celular, e tudo isso tem muita influência na representação e na convivência que a criança tem com o mundo da escrita. Além disso, a Educação Infantil não era obrigatória; agora já está mais institucionalizada. São muitos fatores de ordem social e cultural que mudaram.

Nesse sentido, quando começamos, sob a direção de Emilia [Ferreiro], a entrevistar crianças sobre seu conhecimento da letra, a criança de 5 ou 6 anos não sabia das letras, não tinha consciência da importância da alfabetização. Do ponto de vista do processo psicológico, a escola nunca pensava que esse era um âmbito de desenvolvimento, de aquisição, mas, sim, que era do âmbito do ensino e ponto. Assim, claro, perguntar à criança sobre seu conhecimento da escrita era algo muito excepcional. Perguntar sobre o conhecimento das letras também, porque, se elas não eram ensinadas, se supunha que as crianças não sabiam. Elas até sabiam alguma coisa, mas não sabiam muito. Hoje em dia, uma criança de 5 anos sabe tudo sobre isso, o nível de conhecimento e de informação aumentou muito.

Portanto, a criança é diferente. O contexto cultural é diferente. As condições técnicas, tecnológicas, são diferentes. As condições educativas também são diferentes. Quer dizer, então, que aquela obra não tem atualidade? Acho que tem atualidade, sim; mas muito da descrição teria que ser adaptada a essas novas circunstâncias. Por exemplo, o nível pré-silábico pode ser encontrado agora numa criança mais nova do que encontramos naquela época. A passagem do pré-silábico ao silábico, ou do silábico ao alfabético, é rapidíssima, hoje em dia você quase não chega a ver, é impressionante a rapidez do processo.

Então, do ponto de vista da descrição do processo, dos níveis de aquisição da escrita espontânea da criança, acho que é algo exatamente igual ao que fizemos – mas com adaptação, porque o nível de informação da criança mudou. Além disso, o conhecimento sobre que representação é essa, que aspecto da língua vai ser escrito, também é igual. Hoje em dia, você pergunta para a criança, inclusive para o adulto não muito alfabetizado, e eles pensam que o nome das pessoas e das coisas são a prioridade para se escrever. Há dificuldade de conceber na escrita o verbo, o adjetivo, a preposição; isso continua igual. Qual é então a diferença? Hoje em dia sabemos mais do ponto de vista linguístico e de aquisição da língua, sabemos que o predomínio nominal é muito forte na aquisição oral e também na aquisição escrita. O que ainda precisa ser feito é essa relação entre aquisição oral e aquisição escrita.

Essa perspectiva da construção da linguagem oral, na época da pesquisa, não foi muito evidenciada, correto?

Naquela época, o predomínio, do ponto de vista linguístico, era basicamente o estruturalismo. Depois houve muita influência de Chomsky, com a orientação inatista na linguística, que não coincidia exatamente com nosso ponto de vista, porque nós vínhamos de uma formação piagetiana, mais construtivista. Então a linguística, de maneira geral, não acompanhava nosso processo de descrição. Foi por volta de 1990, mais ou menos, que teve início a linguística cognitiva e começou-se a dar prioridade à comunicação, por um lado, e à semântica, por outro lado. Então se abandonou essa descrição tão formal da língua, que é própria de Chomsky, da gramática universal, e se foi muito para a descrição da aquisição da criança e para a descrição de uso da língua. O que nós conhecemos agora é muito posterior àquele momento, e por isso é interessante pensar numa relação. Porque, se na escrita temos esse predomínio nominal, no oral é igual. Essa dificuldade com verbo, adjetivo, preposição, advérbio também ocorre no oral. Há autores que explicam que esse predomínio nominal sobre o verbo existe porque a relação de significação entre o nome e o referente é mais ou menos direta. São os nomes das coisas, de algo que está presente. Ao contrário, o verbo, o adjetivo e a preposição indicam uma relação. Quando você diz “come”, trata-se de alguém que come algo. Quando diz “que bonito”, é um atributo relacionado a algo. Quando diz “sobre”, “debaixo”, também é relacional. Então, quando aparece o verbo, trata-se de uma cena que a criança tem que entender na aquisição do oral, qual aspecto dessa cena está sendo apresentado pelo verbo.

Quando você fala da mudança do tempo de aquisição da linguagem, pelo maior acesso ou rapidez, como pensa isso em relação a outros sistemas semióticos?

A aquisição do oral é multidimensional, se dá na multimodalidade. Na aquisição do oral, a criança está em um contexto, olha o interlocutor e é olhada por ele, o que também está acompanhado da posição do corpo, dos gestos, do objeto visualmente presente. Se eu falo do lápis, é porque o lápis está presente aqui. Na aquisição do oral, essa multidimensionalidade colabora para a compreensão. Na escrita não está presente essa multidimensionalidade. Por isso insisto muito que a leitura em voz alta do professor tem que ser dramatizada, tem que ser acompanhada de gestos, de olhares, de ênfases, de prosódia, porque a criança entende essa multidimensionalidade, que é o contexto de aprendizagem que ela conhece. Por outro lado, a escrita é linear, perde essa diversidade, por isso é muito importante recuperá-la na leitura em voz alta.

Na escrita, temos o elemento gráfico – e, dirigida à criança, temos também a ilustração. A criança compreende o desenho como uma ilustração figurativa, e sabe que a escrita é algo diferente. Parte do processo para ela é relacionar a ilustração com o texto, compreender qual é a relação existente entre os dois. O texto pode repetir a imagem, pode complementar a imagem, pode fazer referências recíprocas entre imagem e texto: há uma diversidade muito grande de relações. A criança sabe que é diferente e tem que aprender o tipo de relação que existe ali. Isso é a ilustração e o texto vistos por um lado, mas também é muito interessante a ideia de que o próprio texto é ilustrado. Hoje em dia, a tipografia – que é muito ligada às histórias em quadrinhos (HQs), à televisão, ao cinema – também representa no texto. Afinal, quais são os recursos de texto? O espaço gráfico (se está escrito em cima ou embaixo), o tipo de letra, a repetição... Você tem texto com uma repetição que pode ser desenhada. Na HQ, quando se desenha o grito, é possível fazer algo grande, ou algo pequeno, ou realizar um zoom, e dividir essa imagem em certo encadeamento... É super complexo e interessante de se estudar, porque a criança começa rapidamente a captar e a entender. Portanto, a questão semiótica está dentro do texto.

Sendo assim, estes são sistemas que existem um pouco integrados e um pouco em paralelo. A questão é saber quais são as relações entre os sistemas. Por isso eu insisto na literatura infantil, porque ela se utiliza desse conhecimento e o traz para a criança. 

1Promovida pelo projeto Leitura e Escrita na Educação Infantil, coordenado pela UFMG, UFRJ, Unirio e Coedi/MEC


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Entrevista Ana Teberosky (parte 2)