Entrevista: Ana Teberosky (2)


     

Letra A • Segunda-feira, 22 de Dezembro de 2014, 15:06:00

Alguns de seus estudos falam sobre como as crianças se apropriam desses recursos. Pode falar um pouco sobre isso?

Um exemplo: em catalão existe muita palavra monossilábica. E temos lá um poeta que faz uma lista de monossílabos e desenha como uma taturana, realizando um grafismo com as palavras. Esse é o tipo de coisa que a criança capta e reproduz rapidamente. Mas, para isso, precisa ter muita familiaridade com esse tipo de texto. Muitas vezes, pode ser que a criança tenha mais consciência desses recursos do que o próprio professor, que precisa aprender esse tipo de coisa. O professor precisa se apropriar da contemporaneidade da criança. Eu estou sempre aprendendo a criança. Muitas vezes assisto aos programas que elas assistem para saber como aprendem atualmente.

Cada vez mais você tem se dedicado a descrever ações e procedimentos em sala de aula em torno dessa aquisição da escrita, e investido em “modelos de cognição”. Você pode falar um pouco sobre isso dentro de sua trajetória?

Quando comecei a ir para a escola, percebi que o professor precisa de muita formação. O que fizemos primeiro foi levar a realidade para a sala de aula. Por exemplo, você pode levar a criança ao supermercado, como quando ela vai com seu pai ou com sua mãe - fazemos muito isso com crianças de 4 anos. Podemos fazer disso uma situação de escolarização, utilizando os rótulos e as embalagens dos produtos. É interessante porque tudo que você compra hoje em dia está etiquetado. E tudo sempre tem um tipo; todos os produtos são super especializados. Se você compra leite, escolhe entre leite com lactose, leite sem lactose, leite integral, leite desnatado, leite de soja... Se você pega pasta de dente, é pasta de dente anticáries, pasta de dente com isso, com aquilo... Ou seja, a especificidade é impressionante. E a criança entende tudo isso. Ao fazer a lista de compra, temos a palavra composta, o que já gera uma situação complexa. Se você não pega essa riqueza do ambiente, está perdendo uma oportunidade muito importante. Porque é a riqueza do ambiente contextualizado que entra na sala de aula, e assim deixamos que o processo venha da própria criança. Porque você sempre está colocando a criança em situação de escolher a etiqueta correta, copiar a etiqueta correta, buscar no texto a palavra que tem que escrever. O trabalho de extração, de compreensão e de localização é da própria criança.

 

O nosso objetivo é ajudar o professor a criar uma situação, um material junto a uma pergunta, em uma interação que faça a criança pensar e aprender. Esse é o grande segredo. Um outro exemplo: a professora tinha que trabalhar a descrição como tipo de texto com alunos de 11 anos. Primeiro, tem que ter um input, porque se eles não têm modelos de descrição, não conseguem inventar a descrição, não sabem que tipo de palavras utilizam, que tipo de estrutura fazem uso. E também é preciso garantir acesso a modelos diversos, porque a descrição depende do que nós queremos descrever: descrever um itinerário não é o mesmo que descrever uma pessoa, ou que descrever uma situação. Depois disso, decidimos começar com descrição de itinerário, e pedimos à criança para descrever um itinerário cotidiano. Nesse momento, elas olham o itinerário de maneira distinta, porque é para descrever. Essa questão do “para quê” se fazem as coisas é extremamente importante.

Vamos ver outro exemplo: no quinto e no sexto ano (com alunos entre 10 e 11 anos), o currículo pede a aprendizagem dos verbos. Tradicionalmente, se ensina os verbos do ponto de vista do paradigma: primeiro as pessoas, depois os tempos verbais, assim por diante – suponhamos que seja essa a tradição. Então encontrei uma referência muito interessante que fala: o melhor tipo de texto para ensinar o verbo é a receita de cozinha. E é verdade! Porque você tem os ingredientes e depois os procedimentos: pega isso, mistura aquilo... Ou seja, é uma lista de verbos! Então vem a segunda questão: trabalhar a semântica do verbo. O que quer dizer cada um? Então fizemos uma atividade muito bonita: demos para a criança uma câmera fotográfica e dissemos: “você tem que fotografar um verbo”. Claro, para fotografar um verbo, o que é preciso? Primeiro, uma pessoa, porque sem sujeito não há verbo. Então, essa pessoa (ou um animal, ou seja, algo animado) tem que estar fazendo alguma coisa. Assim eles fizeram um glossário de verbos a partir das fotografias. Fotografando o verbo, eles problematizaram e tiveram consciência do que é essa categoria. E ficou super interessante, porque eles definiram o verbo, representaram, descreveram suas características, entenderam o que era transitivo, o que era intransitivo...

Considerando toda essa descrição do processo evolutivo da criança, até que ponto a organização do ensino dialoga com esse processo?

O processo de aprendizagem é um processo psicológico e tem uma restrição evolutiva importante. Restrição no sentido de quais elementos são importantes de se aprender a cada etapa da vida. A base evolutiva, se é implícita ou se é explícita, está no currículo. Eu penso que ela tem que ser mais explícita e mais atualizada, em função das evidências empíricas da pesquisa atual. Por exemplo, de 0 a 3 anos, é muito importante a atenção conjunta e o início da compreensão da intencionalidade. Para compreender a linguagem, e para o processo de aquisição de conhecimentos, é importante o início do desenvolvimento das emoções, assim como é importante o jogo simbólico para desenvolvimento da representação simbólica – o desenho. Tudo isso é evolutivo. Já de 3 a 5 anos, é importante a compreensão mental do outro, das crenças, do pensamento, das emoções... Tudo isso é muito importante para a linguagem, para a cognição, para tudo. A base evolutiva é super importante, ainda mais quando são pequenos. Depois, maiores, o peso evolutivo é mais relativo. Mas, de 0 até 10, 11 anos, isso é muito forte. Por isso acho que o conhecimento da psicologia é importante. A psicologia cognitiva do processo de aquisição. Mas na formação do professor não há matérias desse tipo. Como também não há matérias sobre linguagem. Os professores não sabem como ensinar a língua, não têm informação, então é preciso ajudá-los.

O termo profissionalização apareceu hoje em sua palestra. Por quê?

Exato. Nós estamos fazendo até mesmo um trabalho para profissionalizar os pais. Assim como eles recebem informação sobre vacina, sobre alimentação, precisam receber informação sobre a importância da língua. Nós estamos fazendo um projeto inteirinho para explicar aos pais quais são os momentos mais importantes, o que eles podem fazer para ajudar a criança. Por exemplo, se uma mãe somente fala com a criança de um modo imperativo – “Larga isso! Pega isso! Traz isso!” -, a criança não aprende linguagem. Porque o que essa mãe espera da criança é apenas atuação: que largue isso, que pegue isso, que traga isso; mas não espera linguagem. É um tipo de comunicação que não ajuda a produção e a compreensão. Se você pergunta apenas “sim ou não?”, a criança fala “sim”, “não”, ponto. Você tem que fazer perguntas abertas, perguntar “para quê”, “como”, “onde”, “por quê”, repetir, expandir. Do contrário, não ajuda a criança.


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Entrevista: Ana Teberosky (parte 1)