Inovações pedagógicas na alfabetização | parte 4


     

Letra A • Sexta-feira, 21 de Dezembro de 2018, 14:50:00

 
Os projetos de trabalho
Nos anos 1990, embora não fosse seu foco a pedagogia da alfabetização, a pedagogia de projetos também ganhou terreno e teve repercussão na alfabetização brasileira, coincidindo com a força do trabalho com gêneros textuais, informa Isabel Frade. Para a professora, nessa perspectiva, o que estava em jogo era o sentido das aprendizagens e participação ativa dos alunos e esses pressupostos também configuravam a alfabetização. No entanto, embora tenha sido muito divulgada a obra de Josette Jolibert, pouco se avançou em projetos específicos de alfabetização. Esses projetos vieram a ganhar mais adeptos no contexto do Programa Nacional de Alfabetização na Idade Certa, que associou a eles a perspectiva da sequência didática. A professora da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) Cyntia Girotto argumenta que a concepção de ‘projetos’ tem início bem antes, com o pedagogo francês Célestin Freinet sendo o precursor dessa perspectiva. Freinet começou seus estudos nos anos 1920.   
 
Cyntia explica que o pedagogo francês pensou em princípios de uma educação cooperativa, que levasse a criança à autonomia e independência, tendo como norte principal a oportunidade de todas as crianças aprenderem a se desenvolverem, no seu ritmo, em espaços diferenciados. Para Freinet, ter uma vida cooperativa na escola é propor um trabalho que vai envolver realizar projetos de estudo. 
 
“Por exemplo, os projetos externos, como ele chama de aula passeio, essa comunicação externa com o mundo lá de fora, que seria por meio dos jornais, álbuns, correspondências intra e interescolar. Elas [as crianças] realizam jornal de parede, que são as assembleias. Você faz uma avaliação, [e] durante a semana você tem as assembleias toda sexta-feira. Então veja, são várias proposições metodológicas que juntas dão esses princípios do que a gente poderia chamar de uma pedagogia de projetos”, detalha. Segundo Isabel Frade, “embora fosse uma proposta mais ampla, esses pressupostos e essas metodologias geraram um método dito natural de alfabetização, tendo em vista a centralidade da escrita no projeto de Freinet. No entanto, esta inovação teve mais repercussão na educação infantil do que na escola fundamental.” 
 
Nos anos 1980, o pesquisador espanhol Fernando Hernandez propõe os ‘projetos de trabalho’, trazendo, para Cyntia, a ideia de problematização “de como realmente criar uma situação-problema para ser debatida.” Em sua visão, antes de Hernandez, a pesquisadora francesa Josette Jolibert já havia trazido contribuições, mais abrangentes, ao propor projetos de leitura e escrita inseridos na vida cooperativa, em consonância com a ideia de uma ‘pedagogia de projetos’. 
 
A professora da Unesp afirma que a discussão dos projetos chegou como uma ‘proposta de inovação revisitada’e tomou força na década de 1990, ganhando um caráter de ‘modismo’. “As pessoas tomaram isso como uma nova proposta metodológica e quando a gente tem curso de formação, e passamos a falar sobre isso, muitos dizem ‘ah, mas eu já vi isso, isso eu já sei’, mas na verdade não sabe, porque não houve aprofundamento”, argumenta.
 
Para ela, a proposta dos projetos muitas vezes é tomada apenas como uma sequência de trabalhos, e a essência, que é a participação das crianças, é desconsiderada. “Lógico, o professor tem a função de ensinar, se a gente tirar isso, a gente vai acreditar que a escola é deixar acontecer simplesmente, não é. Mas como ele organiza seu trabalho pedagógico e como ele conclama, convida, cria situações promotoras para as crianças se engajarem nessas metas que são lançadas, é que faz a grande diferença.”
 
Cyntia percebe que, devido à condição de modismo, os professores, às vezes por proposição de secretarias de Educação, veem-se obrigados a realizar projeto, acarretando em um trabalho em que as crianças não estão engajadas. A professora aponta que Hernandez fala que se os projetos chegassem pelos “documentos oficiais”, tendo que ser implementados à força, já não teriam sua essência.
 
“Ele acha que tudo isso que chega nas escolas para ser essa coisa única, homogênea, é uma grande mentira e seria uma mentira a gente acreditar que, vindo dessa forma, realmente isso daria certo, porque não é assim. As singularidades seriam esquecidas, as especificidades de cada turma e criança.” A professora da Unesp salienta que é necessário problematizar dentro dos projetos de trabalho.
Entender o presente sem desconsiderar o passado
Diante de tantas concepções, é compreensível que o professor se sinta inseguro com qual caminho seguir. Para a professora Estela, da UEMS, “tudo cai na cabeça do professor”, com políticas públicas geralmente vindo com inovações de ‘paraquedas’.“Geralmente é assim, o professor estava alfabetizando lá por tanto tempo de uma certa maneira. Com sucessos, com fracassos, com dificuldades. E criando ali em cima da sua profissão, estudando, atualizando-se. Aí vem uma política e diz ‘não, agora não é mais assim que alfabetiza, é assim’”, aponta.
 
Em sua visão, é necessário que exista uma formação contínua e apoio pedagógico e estrutural, para que o processo não seja penoso para o professor. Do contrário, ela acredita que pode ocorrer de o professor continuar trabalhando de forma velada com o que sabe fazer e “fazer de conta” que está cumprindo a “novidade”. Estela também destaca que voltar ao passado não é uma solução. “O mundo está em movimento [e] os alunos estão chegando com outros saberes na escola”.
 
O professor Artur Morais, da UFPE, elenca o que são, em sua visão, modismos problemáticos que vêm sendo apresentados como solução por gestores de políticas públicas e empresários de educação, causando “pragas do ensino de alfabetização”. Para ele, a imposição de bases curriculares sem debate é uma delas, desconsiderando a participação dos educadores que estão no “chão da escola”. Outra é o “lugar secundário ou ausente” do ensino da notação alfabética e da leitura e produção de textos no final da Educação Infantil.
 
A imposição do uso de “apostilados” e “sistemas de ensino”, a redução do ensino a um “treinamento para os alunos serem bem-sucedidos em avaliações externas”, a adoção do sistema de ciclos “sem propostas de efetivo atendimento aos alunos que têm um ritmo mais lento”, a realização de programas de “remediação” e a realização de avaliações externas “sem currículos e sem que as matrizes de habilidades avaliadas sejam discutidas pelos educadores” são outras questões que, para o professor da UFPE, não têm favorecido o ensino de alfabetização. Todas as dimensões apresentadas pelo autor podem ser consideradas modismos que não alteram, na essência, as práticas e resultados da alfabetização. 
 
Como avanços, ele ressalta a adoção da proposta de “alfabetizar letrando”, um aumento de práticas de leitura literária “mesmo antes de as crianças poderem ler sozinhas” e uma freqüência maior da escrita de gêneros textuais reais, como histórias, relatos pessoais e poemas. Na visão de Artur, também é necessário que se assuma a formação continuada. Para ele, “uma profissão que só pode ser bem praticada quando os que a assumem têm oportunidades reais de refletir sobre o que fazem.”
 
Cancionila, da UFMT, ressalta “que nem sempre as políticas públicas e os teóricos dialogam com ou valorizam os saberes de ação dos professores”, dando razão para a reclamação dos professores de que as políticas muitas vezes “vêm de cima”. Além disso, ela aponta que a Universidade também nem sempre esteve próxima às redes de ensino. Para ela, “as tensões continuam, mas isso está mudando”, afirma, citando o PNAIC (Pacto pela Alfabetização na Idade Certa) como exemplo da aproximação. 
 
Cancionila vê como uma estratégia para reduzir a polarização entre inovação e tradição, divulgar mais estudos históricas em alfabetização. Para a professora Doris, da UFSM, é importante distinguir “tradição” de “tradicional” para evitar essa disputa. “Quando um professor alfabetiza de maneira tradicional, é porque ele ignora tudo aquilo de novo que as pesquisas e as próprias experiências culturais vão produzindo. Agora, a visão de tradição, no sentido de valorizar o que as gerações têm como herança cultural, seria algo positivo”, diferencia.
 
A professora Maria do Rosário, da UNESP, aponta que a tensão entre modernos e antigos ocorre “no âmbito de disputas pela hegemonia de projetos políticos para a nação.” Para ela, é necessário “conhecer aquilo que constitui e já constituiu os modos de pensar, sentir, querer e agir de gerações de professores alfabetizadores (mas não apenas), especialmente para compreendermos o que desse passado e seus projetos políticos insiste em permanecer.”
 
Maria do Rosário vê em permanências “silenciadas ou silenciosas, mas operantes” e nos retornos “ruidosos e salvacionistas, mas simplistas e travestidos de inovação”, resistências para que sejam encaminhadas mudanças efetivas para garantir o direito à educação e à alfabetização “dos excluídos da participação social e política.”
 
 

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