Letramentos pelo mundo - parte 2
Letra A • Sexta-feira, 13 de Julho de 2018, 12:37:00
Por Vicente Cardoso Júnior
Os desafios da qualidade e da diversidade no México
Considerando sua dimensão territorial e a acentuada desigualdade socioeconômica, é possível dizer que o México tem desafios semelhantes aos do Brasil na promoção do acesso e da permanência na escola. “Segundo dados oferecidos pelo Instituto Nacional de Avaliação da Educação, no ciclo 2013-2014, a maior taxa de cobertura foi registada no ensino primário (99,4%), enquanto no ensino secundário foi de 84,9% e no ensino pré-escolar atingiu 71,3%”, conta a pesquisadora Celia Díaz-Argüero, da Universidade Nacional Autônoma do México. Conforme ocorre a ampliação do acesso, o desafio da qualidade vem se tornando ainda mais central.
Em agosto deste ano, entra em vigor na educação do México o Novo Modelo Educativo (NME), “uma reforma educacional que abrange aspectos trabalhistas e aspectos curriculares”, sintetiza Celia. Para ela, “no NME há dois aspectos particularmente relevantes: atenção à diversidade e inclusão, por um lado, e autonomia curricular, por outro.” Sobre o segundo ponto, ela destaca ser um movimento bastante inovador para um sistema educacional que sempre foi “altamente centralizado”. “Desde a sua criação, em 1921, a Secretaria de Educação Pública tem sido a instituição responsável pela elaboração dos Planos e Programas Educacionais que devem ser utilizados em todo o país. Gradualmente, as 32 unidades federativas que compõem o país foram incorporando conteúdos regionais e/ou locais. No NME propõe-se que 30% do tempo curricular seja definido pelas escolas.”
As diferenças educacionais no país têm a diversidade linguística como um de seus aspectos principais: o Catálogo Nacional de Línguas Indígenas, publicado pela primeira vez em 2009, contabiliza 364 variantes dialetais, organizadas em 68 grupos, dentro de 11 famílias linguísticas. Esse é, hoje, um dos grandes temas da educação inclusiva no México. “Nos programas educativos publicados recentemente, se estabelece, pela primeira vez na história da educação no México, um espaço curricular para o ensino de línguas nativas. Além disso, o ensino do espanhol como segunda língua é proposto. Essa forma de abordar a educação da população que não tem o espanhol como língua materna marca o início de uma nova etapa na atenção que é dada a essa população e abre a possibilidade de alcançar um bilinguismo equilibrado”, comenta a pesquisadora.
Sobre a formação de leitores no país, mesmo reconhecendo a existência de importantes organizações interessadas no tema, Celia admite que a escola ainda é a principal mediadora da cultura escrita para as crianças mexicanas, “principalmente porque é a única instituição que atinge a maior parte da população infantil e porque suas ações também afetam as famílias dos alunos”. Celia ressalta a importância dos programas nacionais de distribuição de livros que, entre 2001 e 2014, possibilitaram a aquisição e distribuição de 260 milhões de livros, distribuídos entre bibliotecas escolares e pré-escolares, além das bibliotecas de sala de aula. No entanto, em outra semelhança com o cenário brasileiro, um ponto sensível no México é, ainda, a formação de professores. “É essencial erradicar antigas tradições sobre o modo como a leitura e a escrita são ensinadas. Por exemplo, em muitos contextos ainda se pensa que, se as crianças ‘não sabem ler ou escrever’, não devem ter acesso a livros ou outros materiais escritos”, afirma Celia.
França: onde nasce a escola moderna
Na França, a escola pública, laica e gratuita está intimamente relacionada à história moderna do país. “Ela é herdeira do ideal iluminista de emancipação pelo saber, bem como do universalismo republicano forjado na e pela Revolução Francesa”, afirma o pesquisador Leandro de Lajonquière, da Universidade Paris 8. Não à toa, a universalização do acesso, ainda um desafio para inúmeros países, “foi buscada deliberadamente no final do século 19, quando da fundação da chamada Terceira República, que dera lugar mais tarde à emergência das primeiras leis de justiça social”, completa o pesquisador.
Hoje, parte das preocupações e debates gira em torno da inclusão de crianças imigrantes – o que, de acordo com Leandro, não é exatamente um tema novo para a educação no país. “A França sempre foi uma terra de imigrantes, sempre recebeu pessoas de outras nações. No entanto, creio que, apesar da lamentação atual sobre a tal crise na educação, o sistema escolar ainda possui potência simbolígena.” Ele explica: “Ou seja, a escola é capaz não só de transmitir com certo êxito uma gama considerada indispensável de saberes, como consegue inscrever as crianças numa certa narrativa nacional amarrada em torno do debate sempre reaberto pela divisa fundadora do projeto modernizador do laço social: liberdade, igualdade e fraternidade”.
A importância da escola está também relacionada à centralidade da escrita na sociedade francesa. “É uma cultura em que, se alguém não sabe ler e escrever, não consegue circular socialmente. Qualquer trâmite – inclusive as burocracias mais triviais do cotidiano – se faz por escrito”, afirma. Na cultura escolar, essa centralidade da escrita se manifesta até pela existência de competições de ditado e de ortografia nas escolas e até entre elas. Na escola maternal (etapa que corresponde à Educação Infantil brasileira), a criança “é convidada a reconhecer e poder escrever seu primeiro nome”, relata Leandro. Ele explica como isso está presente, por exemplo, em uma prática ligada à organização do espaço: “Na petite section [turma de crianças de 3 anos], na entrada das salas tem o lugar de pendurar os agasalhos, logo na entrada, com o nome e a foto de cada aluno. Espera-se que, aos 4 anos, a foto já possa ser retirada”, conta.
A passagem para a escola primária se dá aos 6 anos, quando tem início a alfabetização formal. Segundo Leandro de Lajonquière, nessa etapa não há uma distinção ou especialização dos professores lotados para os primeiros anos. “O professor da escola elementar está em rodízio o tempo todo. Não há a figura do professor especialista na alfabetização”, afirma. Leandro conta ainda que não há método de alfabetização considerado oficial, pois todo professor tem liberdade de cátedra. A seleção dos professores para a escola primária se dá por meio de um mesmo concurso em todo o país, o que ajuda a garantir igualdade dos quadros nas diferentes regiões. “O professor é um funcionário público do estado nacional. A educação primária é nacional, portanto todo mundo é funcionário do mesmo Ministério.”
O ensino de Português em Portugal
Em Portugal, a educação literária é um dos eixos do ensino de Português no ensino básico, junto à leitura e escrita, gramática e oralidade. As leituras literárias a serem realizadas em cada ano escolar são apresentadas no documento ‘Programa e Metas Curriculares’, com a justificativa de garantir “que a escola, a fim de não reproduzir diferenças socioculturais exteriores, assume um currículo mínimo comum de obras literárias de referência”. Com isso, o professor poderá fazer pequenas escolhas dentro de listas bem definidas. No 9º ano, por exemplo, o dramaturgo Gil Vicente é uma das leituras obrigatórias, com a possibilidade de escolher uma entre duas obras dele indicadas no documento.
Para a pesquisadora portuguesa Rómina Laranjeira, desde a reforma educacional que introduziu as metas curriculares, a educação em Portugal “tem se traduzido mais num ensino de conteúdos, mesmo de início, logo no 1º ano, do que em processos de compreensão e de interpretação textual, de desenvolvimento de contextos linguísticos aplicados, por exemplo, ao texto literário”. Apesar de o currículo voltar-se para metas, sem indicação de métodos de ensino, Rómina Laranjeira também observa que uma opção metodológica comum entre os professores no momento de alfabetização também contribui para a dissociação dos eixos de ensino da língua. “Há uma variação, dependendo de escola e de turma para turma, mas genericamente o que acontece muito é o uso do modelo fonético ou fonológico, por ser uma língua alfabética. Isso acarreta algumas dificuldades. Em termos de letramento, o domínio da iniciação literária muitas vezes é trabalhado de modo dissociado”, afirma.
Mas a dificuldade de integração dos diferentes eixos do ensino de Português vai além do ciclo de alfabetização, o que, segundo Laranjeira, resultaria de um foco em objetivos e no desempenho, “que é avaliado e de certa forma medido”. “Penso que os principais desafios neste momento [após a reforma curricular] seriam trabalhar-se o letramento de um ponto de vista crítico, de um ponto de vista de socialização do aluno, e de um ponto de vista da construção da sua identidade leitora, que são elementos de uma dimensão que não está muito presente de forma transversal.”