Letramentos pelo mundo - parte 3


     

Letra A • Sexta-feira, 13 de Julho de 2018, 12:41:00

 

Por Vicente Cardoso Júnior

Novos sentidos sobre ser canadense

 
Colonizado por dois povos europeus (franceses e ingleses), o Canadá viveu um arranjo peculiar em sua independência: foram criados dois sistemas públicos de ensino, um laico e um católico – este último para atender a demanda dos colonos franceses. Os dois sistemas coexistem até hoje. Além disso, há escolas onde o ensino é em francês, já que este é um idioma oficial (junto ao inglês) e língua materna de cerca de 20% dos canadenses. No entanto, observa o pesquisador canadense Brian Morgan, o público dessas escolas não é necessariamente formado por crianças que têm o francês como primeira língua. “A imersão em francês é vista praticamente como um sistema semiprivado, e tem sido muito atrativo para a classe média e classe média alta colocar suas crianças nessas escolas”, relata. “Como se pode ver, há uma multiplicação de administrações [do sistema educacional público] e a questão que surge é: esta é uma maneira eficiente de utilizar os recursos? É uma forma de promover justiça social?”
 
Mais que o bilinguismo oficial, Morgan afirma que a vida nas grandes cidades do país é marcada pelo multilinguismo decorrente das imigrações recentes. “Toronto, por exemplo, tem aproximadamente 40% das crianças na escola provenientes de famílias que não falam inglês em casa. Portanto, praticamente todo o letramento na escola será [para elas] em uma língua adicional”. Além disso, afirma Morgan, mais do que o ambiente escolar, a cidade como um todo promove um questionamento das práticas tradicionais de ensino da língua. “Temos áreas na cidade com placas em português, em italiano, em chinês, em vietnamita, em grego… Parte da experiência de viver em Toronto é que você sempre está envolvido por um tipo de espaço multilinguístico ou translinguístico.” Para o pesquisador, o desafio da escola é maior na medida em que o contexto tensiona as identidades e concepções tradicionais das crianças: “Elas trazem sentidos fluidos e múltiplos sobre quem são e sobre o lugar ao qual pertencem, e isso está mudando o que nós achamos que significa ser canadense.”
 
Num momento em que o país acabou de promover uma Comissão de Verdade e Reconciliação, as línguas dos povos originários do Canadá também ganham novos sentidos na educação canadense. “Uma das questões [da Comissão] foi a nossa atitude histórica perante os povos indígenas na colonização. Nós os forçamos a ir a escolas e a assimilar nossa língua e cultura. Portanto, não deveríamos estar dedicando recursos também para tentar revitalizar e proteger as línguas indígenas no Canadá?”
 

Na Nigéria, a escola fala outra língua

 
Por sua condição linguística, a Nigéria pode ser encarada como microcosmo do que ocorre na maior parte do continente africano: com mais de 500 línguas faladas por todo seu território, o país tem o inglês – a língua do antigo colonizador – como o idioma oficial. A política de educação nacional orienta que, nos três primeiros anos do ensino primário, as escolas promovam a alfabetização na língua inglesa e na língua nativa da criança, com ênfase na primeira; então, a partir do quarto ano, a educação escolar deve se dar toda em inglês. 
 
A efetivação dessa política, porém, varia nas diferentes regiões do país – há, por exemplo, a abordagem Straight to English (Direto ao Inglês), que aposta no ensino exclusivo em inglês logo no primeiro ano. “A preocupação de quem promove essa abordagem é que muitas crianças nigerianas não são alfabetizadas nem em inglês, nem em suas línguas nativas”, relata o pesquisador Timothy Oyetunde, da Universidade de Jos. Ele afirma que o fato de a educação escolar ser realizada em uma segunda língua – e não nos idiomas maternos dos estudantes – também é um grande complicador, já que “o ambiente fora da escola não fornece prontamente apoio para a alfabetização”. “O que isso implica é que a escola precisa mais do que compensar o que a casa ou a comunidade não podem fornecer.”
 
A preocupação com o analfabetismo no país se agrava ao se levar em conta a condição dos professores: “muitos também leem com dificuldades ou não são plenamente alfabetizados em inglês, que é o meio de instrução nas escolas”, ressalta Oyetunde. Além da baixa remuneração e salários muitas vezes atrasados, a formação também é muito deficitária, na avaliação do pesquisador. “A leitura, por exemplo, é ensinada casualmente dentro do tempo alocado para a língua inglesa. De fato, muitos professores nigerianos não sabem a diferença entre ensinar a ler e ensinar inglês.”
 

Peru: a língua quechua resiste

 
Com mais de 10 milhões de falantes distribuídos pelos países dos Andes, o quechua é uma das maiores línguas ameríndias vivas hoje. É um dos idiomas cooficiais do Peru (concomitantemente ao espanhol, ao aimara e a outras línguas nativas), onde é falado por 3 milhões de pessoas. Por mais de meio século, já é objeto de políticas educacionais voltadas para as zonas rurais, mas só recentemente passa a ser ensinado nas escolas das cidades. “O ensino de quechua em escolas primárias da zona urbana é parte da implantação de políticas linguísticas regionais que buscam promover ou recuperar o uso da língua indígena em zonas onde as crianças já não a aprendam”, relatou a pesquisadora peruana Virginia Zavala em sua apresentação no 5º Colóquio sobre Letramento e Cultura Escrita, promovido pelo Ceale em 2014.
 
Apesar da abertura para a diversidade, essas práticas educativas ainda são afetadas por concepções negativas sobre a língua indígena. É corrente, não só entre educadores, mas na sociedade peruana em geral, uma ideologia que “associa o quechua à ruralidade e que assume que não é mais necessário falar essa língua se a criança já sabe espanhol”. Zavala comenta ainda que, para evitar sofrerem preconceito, crianças falantes de quechua que mudaram do campo para a cidade tentam esconder sua língua materna.
 
Ao mesmo tempo em que há uma atenção à diversidade e à educação intercultural, Virginia Zavala acredita que isso convive, no Peru, com uma tendência tecnicista em favor de uma educação homogeneizante – mesmo que os dois discursos convivam de maneira contraditória. “Você pode ter um currículo que é homogeneizante, um discurso oficial que é homogeneizante, e ainda assim algo diferente está acontecendo na sala de aula”, afirma.
 

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