Escola sem partido e educação da infância
Por Maria Cristina Soares de Gouvêa - professora da Faculdade de Educação da UFMG, pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Infância e Educação Infantil (Nepei)
Geral • Quinta-feira, 11 de Agosto de 2016, 17:29:00
Para pensar sobre os impactos do projeto de lei do programa Escola sem Partido no segmento da Educação Infantil, vejamos dois itens da proposta que dizem respeito mais diretamente à educação da infância:
“VII - direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções.
Parágrafo único. O Poder Público não se imiscuirá na orientação sexual dos alunos nem permitirá qualquer prática capaz de comprometer ou direcionar o natural desenvolvimento de sua personalidade, em harmonia com a respectiva identidade biológica de sexo, sendo vedada, especialmente, a aplicação dos postulados da ideologia de gênero.”
Comecemos pelo artigo VII. Apresenta-se uma cisão entre família – a quem caberia o papel de educar – e escola – a quem caberia a função de instruir. Essa dissociação é absurda, revelando suas contradições já na educação da infância. Nesse momento da trajetória de vida, a criança depara-se com um novo mundo, para além do núcleo familiar. Independente da conformação que sua família assume, ela conviverá com crianças que trazem outras experiências de vida, que moram em locais diferentes, com arranjos familiares diversos, religiões distintas, identidades étnico-raciais variadas, o que implica numa ampliação de mundo e uma vivência cotidiana da diferença. Este aprendizado da diversidade, em que as referências de mundo e os horizontes se alargam, é fundamental para a formação ética da criança.
Para além da diversidade do grupo infantil, a criança também conviverá com professores, funcionários da escola, mães e pais, que trazem também outras histórias e referências. Serão os educadores que, por meio de sua prática pedagógica, trabalharão que essa diversidade se faz presente não apenas na escola, mas no mundo.
Assim é que o Escola sem Partido, ao negar à criança o direito ao aprendizado da diferença, não contribui para sua educação moral; ao contrário, ele a restringe. O apagamento e a negação da diferença são próprios de uma visão autoritária de mundo. Não estamos protegendo a criança ao pretender, na condição de pais, exercermos o monopólio da transmissão de valores. A diferença não ameaça; enriquece. O que fará um professor de Educação Infantil se lhe for negado o papel de educar, de desenvolver valores éticos? Qual o sentido da Educação Infantil, se esvaziada de sua função educativa?
Aí chegamos ao parágrafo primeiro da proposta. Negar à criança o conhecimento sobre as diferentes orientações sexuais e identidades de gênero é expressão não apenas de ignorância, mas de desrespeito à diferença. Pensemos num modelo familiar que tem se expandido no Brasil: uma família constituída por um casal homossexual que adota uma criança, adoção garantida por lei. De acordo com o projeto de lei, esse arranjo não poderia ser tratado na escola. A família concreta desse aluno seria negada, o que implica na rejeição da própria criança.
Nesses casos, o que os registros indicam é que as crianças, diferentemente dos adultos, convivem com naturalidade com famílias constituídas por dois pais ou duas mães. Na condição de educador, cabe ao professor justamente ampliar a visão de mundo da criança, acolhendo a possibilidade e a riqueza da multiplicidade de arranjos de família, calcada na variedade de orientações sexuais e afetivas.
Enfim, o que propõe o Escola sem Partido nada mais é do que a desumanização da criança, através do empobrecimento de sua experiência e negação da vivência da diferença.