Graça Paulino, em suas próprias palavras | parte 3
Letra A • Quinta-feira, 17 de Outubro de 2019, 17:11:00
De pessoas a personagens
Eu disse anteriormente que não queria tecer o elogio universal da leitura. Nem sei bem o que ela trouxe de melhor ou de pior para mim. Desde criança gosto de histórias tristes e sem final feliz. Como as histórias de Dostoievski, de Faulkner, de Machado, de Clarice. Provavelmente a melancolia presidiu minhas escolhas literárias fundamentais, pois é antigo o meu horror àquelas alegrias frívolas e falsas que se exibem nas rodas e não resistem a um minuto de solidão. Por agora, sei que estou viva e com disposição suficiente para escrever minha história de leitora, antes que esta ocasião se perca e alguém pense em fazer isso em meu lugar.
Duas personagens são muito usadas como exemplos do mal que a leitura pode fazer aos seres humanos: Dom Quixote e Madame Bovary. Envolvidos na ilusão que a leitura lhes propiciou, acabaram com suas vidas em meio a frustrações, engodos, diversos sofrimentos.
Dom Quixote quis ser cavaleiro andante, numa época em que isso não era mais possível. Por isso sofreu, adoeceu, morreu, antes mandando queimar a sua biblioteca. Ema Bovary quis ter um homem perfeito como seu amor, embora esse modelo existisse apenas nos romances que lia. Arranjou amantes e frustrações; acabou se matando, como suas heroínas românticas.
Entretanto, engana-se o leitor que tomar essas duas histórias como condenações da leitura. Cervantes, em Dom Quixote, e Flaubert, em Madame Bovary, criticam, na verdade, as sociedades em que essas personagens viveram, sociedades em que os padrões dominantes de comportamento são medíocres, banais, acanhados. O sonho da leitura, mesmo levando ao sofrimento e à morte, permanece mais válido que a acomodação passiva, própria da vida numa sociedade fria e reprimida como aquelas, que são em parte ainda existentes.
Há poucos dias, vi um filme que muito me impressionou: Leolo. Conta a história de um menino canadense, que passa seus melhores momentos de vida lendo e escrevendo. Lendo o único livro ao seu alcance, livro que ele não escolheu, e escrevendo sobre os joelhos em caderno velho. Mas o mundo estava tão degradado e degradante que não lhe sobravam opções. Ele acaba se matando, num sonho às avessas, mas seus textos permanecem, compondo um lixo melhor para a sensibilidade de algum leitor sobrevivente. Tudo o que Leolo escreveu vai parar no lixo, nem poderia ser outro o seu destino num meio tão desumanizado e cruel. Mas as maravilhas são resgatadas do lixo para recompor a vida de acordo com os sonhos, num filme em que o menino triste pode narrar à vontade sua infância para nós espectadores, nos quatro cantos do mundo.
Paulo Coelho começa O alquimista falando da leitura de um livro “que alguém na caravana havia trazido”. Trata-se da história de Narciso, reinventada por Oscar Wilde. O lago onde Narciso se mirava nunca tinha percebido a beleza do herói porque acreditava que este era apenas reflexo da beleza da água. Dois péssimos leitores estão nessa parábola figurados, ambos representando a impossibilidade máxima da leitura: o egocentrismo. Quem vive mirando apenas a si mesmo, em função da própria vaidade, não consegue enxergar o outro, está fechado para o mundo, com todos os seus textos.
Aí se tornaria imprescindível a intervenção do mestre: possibilitar a maravilhosa experiência da leitura, ajudando a romper essa couraça formada pela ausência, aparentemente gratuita, de curiosidade e sensibilidade. Quem diz que não gosta de ler foi, com toda certeza, transformado em não leitor. Eu os chamo de leitores sem textos, porque ainda não descobriram os livros adequados. Ainda não puderam se apaixonar pela leitura. Os melhores condutores dessa experiência são, é claro, os próprios textos. Mas, e quando estes não bastam sozinhos, quando se mostram mais fortes as crenças e os costumes que representam, consciente ou inconscientemente, a ideologia da exclusão? Não poderia entrar no processo a escola, o professor, mediando o contato feliz de seus discípulos com a escrita?
Eu, que passei da condição de aluna à de professora, aparento ter sido feliz na escola. Infeliz não fui. Notas boas, sucesso não me faltou. Todavia, creio ter quase dispensado a interferência de meus mestres para descobrir os prazeres da leitura. Às vezes, a gente relembra experiências tristes para evitar que se repitam no presente, com outros ou com nós mesmos. Vou contando.
Continue lendo:
Parte 4 - Favores, presentes, troféus: livros na escola
Parte 1 - Graça Paulino, em suas próprias palavras
Parte 2 - Da cozinha à mesa posta